Do baú de Licínio Longuinhos, tio-avô da minha mãe, resgato mais um texto, especialmente dedicado ao Guy Marais e ao Aldo Nim, na esperança de que lhes sirva de escarmenta. Eles que tomem tino com o que andam para aí a dizer e que se cuidem, tomando como exemplo o Burgo Podre que, apesar do muito que prometia, morreu ao segundo número.
UMA EXECUÇÃO NO TOURAL
Já fizemos testamento, Senhores!, de há muito, que a nossa alma livre de pecado anda encomendada a Deus.
Podem, pois, quando lhes aprouver, deliciar Guimarães com o espectáculo medieval da nossa execução no Toural, amarrados às grades como a pelourinho, no trajo vermelho de vilões ruins.
Chicoteiem-nos a valer, retalhem-nos as carnes a tangateadelas bem zurzidas, façam espirrar, da nossa pele quente do sol, sangue, muito sangue capaz de saciar toda a sede de vingança dos vossos rancores, sangue em abundância que regue as flores do Jardim, que murcharão porque temos na alma o veneno maldito. Venham todos, as classes mais nobres e a mais baixa ralé, ver o castigo duns malvados que ousaram, na Terra de Guimarães, dizer a verdade, apregoar a verdade, imprimir a verdade! Venham as medrosas, as donzelas castas e honestas, que amam os seus namorados e que adoram o seu gato, venham gritar aos ouvidos dos supliciados que são puras como as flores e lindas como os anjos; venham os burgueses sarcásticos, magros ou gordos, idiotas, dizer-nos que são honestos como a honestidade, bons como deuses e castos como o manda a Santa Madre Igreja; venham, línguas daninhas, homens da elegância e do café, reclamar para si a fidalguia do talento, a nobreza do espírito, a inteligência da galanteria...
Venham, venham! E puxem com alma os chicotes, azorraguem, malhem, cevem-se nas nossas carnes roxas e trituradas.
Eh! fartar vilanagem!...
Assim nos ameaçaram.
Em tom formal e aflautado, na Tabacaria Lemos, jurou um homem que chafarica em vários artigos e piadas:
– Dou a minha palavra de honra que não se publica o n.° 2.° do «Burgo Podre»!...
E o n.° 2.° cá está para lhe berrar bem alto: – não tens palavra, pobre diabo, a tua honra vale tanto como os teus chinelos! –
E a este, seguir-se-ão novos números, havemos de continuar, doa o que doer, porque, tendo-nos abrigado pelo estudo à lei, queremos que se sanem as misérias e se desinfectem as podridões que são deste ou daquele, de António ou de Bento, de Paula ou de Gracinda, que são daqueles que as tiverem. Não apontamos nomes, não ferimos individualidades — a nossa obra é geral, construída sobre a realidade, na sujeição à natureza, na independência do pensamento. Marcámos a fogo o estigma do crime, e quem quiser que enterre a carapuça.
Acham desabrida a linguagem? Ouçam o talentoso ironista Fialho de Almeida: – “Na literatura, princesas, não há nem pode haver palavras sujas. O que há é assuntos sujos, assuntos pulhas, deletérios assuntos, que os escritores não inventam, e fazem parte do dia a dia da cidade, assuntos enfim de que a linguagem escrita é apenas o impreterível sinal gráfico. Consequentemente o pudor feminino tem apenas, como meio de impedir que os panfletários escrevam plebeísmos, o evitar que a sociedade seja menos torpe, e os seus maridos e irmãos menos canalhas.”
Não endireitamos o mundo? Somos loucos? Bem-fadada a nossa consciência, sereno o nosso sono – roncámos talvez menos que vós.
Ameaçam-nos? Querem bater-nos? Coragem. Vai a cacete? Seja!
Eduardo de Almeida e/ou Alfredo Pimenta
(copiado de O Burgo Podre, n.º 2, 1902, que, depois deste, nunca mais viu a luz do dia.)
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