terça-feira, 6 de novembro de 2007

Os Nossos Clientes: Guy Marais

Pedem-me uma biografia. A ela vamos, não pela minha mão, mas pela pena de Georges Savage, editor crítico de alguma da minha obra, cínico amigo que não perde uma oportunidade de me mitificar. O que os caros leitores se preparam para ler é uma mistura harmoniosa de realidade com pouquíssima ficção. Alteram-se datas e nomes, salvaguardam-se identidades, exceptuando minhas e de meus pais, de molde a proteger, destarte, todos aqueles que comigo privaram e que fizeram a minha vida até agora. Mas não será difícil compreender quem é quem neste caminho que trilho de há quarenta anos a esta parte.

"Guy José de Marin Marais nasceu em Paris, no Marais, a 16 de Outubro de 1967. É filho de Cidália do Céu de Sá José e de Ghislain Marin Marais, que dizem ser descendente em linha directa do afamado compositor seiscentista. Muito pouco ou quase nada o liga a Guimarães, a não ser o facto de lá viver desde 2004. Mora numa casa de arquitecto em Pinheiro.
A infância de Guy Marais foi igual à de todos os meninos parisienses: cultura, haute couture, cinema, bouquinistes ao sábado, Cahiers du Cinema, Echo des Savanes, piano, fromage frais, Jacques Dutronc, Michel Arnaud e Arthur H.. Perseguia-o sonho de uma vida iluminada e Guy, esperançoso, vivia na pungente espera do momento de tão almejada revelação. Um dia, nos idos de oitenta, no metro de Paris, mais precisamente na estação de Chardon Lagache, ouviu os cantares de um grupo de jovens estrangeiros. Percebeu que se dirigiam a si, já que cantavam algo parecido com Oh, Guy Marais, ton progrés é tua vide. Marais ficou radiante, em êxtase pré-xamânico, tipo figura de intelectual parisiense de idos de oitenta, entre o cachecol e a sapatilha branca, com óculos de tartaruga, tamanho extra largo, quando vê um filme de Louis Malle. Na companhia desses mecs alienantes, Guy Marais saltou, dançou, comeu e bebeu durante três dias e quatro noites, até não suportar mais o cantar do galo francês no Bois de Boulogne. O bando era proveniente de Guimarães, berço de pedra du Portugal, país de sa mère Cidália de Sá José. Entre os vapores do vinho, os rapazes e raparigas revelaram-lhe a cosmogonia da sua cidade: a origem e a história das suas gentes e dos seus lugares, do labor da sua grei, dos reis conquistadores e dos castelos encantados. Guy facilmente percebeu que tinha que partir para aquele lugar e que aquele lugar iria ser o seu. E partiu. Fê-lo à boleia, numa road trip françuguesa, com destino final em Guimarães, apoiado por um esparso pecúlio dado por sua mãe, repudiado pelo silêncio de seu pai. Olhando em frente para o seu destino a cumprir - a bela e formosa Guimarães, cidade de pedra com nome como o seu – Guy deixava para trás o pútrido ar da Îlle de France, jurando não mais voltar à cidade-luz. Guimarães era agora a sua meta, não importando nem o tempo que demoraria a lá chegar, nem o modo como o faria. Rumou primeiramente até Clermont Ferrand, onde viveu dois anos com a comunidade portuguesa local, aprendendo-lhe os modos e os trejeitos. Aperfeiçoou a língua e a escrita lusas. Leu Camões, Hélder, Sena, Proust e a Antologia de Poetas Vimaranenses. Viu os filmes de Oliveira, o francês mais português de todos. Apaixonou-se, incorrespondidamente, pela filha do presidente da Mairie, Marie, por quem sentiu imensa saudade – oh, registo de tão grande portugalidade assimilada – na manhã solarenga de Agosto em que deixou Clermont Ferrand rumo a Saint-Bonnet-le-Château, onde permaneceu pouco tempo. Por engravidar Amelie-Jeanette Pereira, a filha do talhante português existencialista da rua da Ligne Maginot, Guy Marais teve que pôr em prática a arte da fuga em todo o seu esplendor, fintando o destino. Da sua curta permanência na vice-capital do Loire, Guy guarda memória dos primeiros domingos lá passados, sempre na companhia das meninas Neuilly, ensinando-lhes a arte da viola de arco, em troca da aprendizagem de todos os segredos do croché e de todo o tipo de sevícias e carícias. Tudo se ensinava e aprendia no quarto de seus ausentes pais, irregulares pagadores das horas de ensinamento da viola de arco, donos de um belíssimo relógio de bolso de ouro e diamantes que Marais não teve pejo em esbulhar - facto que nega peremptoriamente - por crêr que de tal forma saldava as aulas de viola de arco em atraso.
De Saint-Bonnet-le-Château, Guy Marais rumou até Le Puy-En-Velay, decidido a não mais descer do nível de cavalheiro onde tanto lhe custara chegar. Aí - em Le Puy-En-Velay - passou fome durante alguns dias, os suficientes para subtrair uma edição primeira e assinada de um livro de George Perec a um reputado alfarrabista local, vendendo-a por uma pequena fortuna a outro reputado homólogo de Romans-Sur-Isère. É nessa pequena localidade que é barbaramente agredido, numa madrugada de domingo. De tamanha barbárie resultou a perda, por amputação, do mindinho esquerdo. Diz-se que tudo aconteceu por causa do jogo, vício que acompanhou Guy Marais durante alguns anos. Inspirado por tão perniciosa alegação, improvável por não rememorada, Marais abafa as meias medidas e, com a considerável maquia conseguida na venda do livro de Perec, rumou até ao Mónaco, onde terminou o curso de sociologia e privou com a aristocracia local. De dia trabalhava como croupier no casino, à noite dedicava-se de corpo e alma aos recitais de poesia burguesa nos salões da Baronesa Wendt de Osterberg, uma idosa com quem dizem ter-se envolvido sentimentalmente. As suas lucubrações levaram-no à escrita e publicação de pequenos contos, de teor erótico-cultural, feitos de frases curtas e incisivas que lhe caucionaram o respeito da burguesia boémio-intelectual local. Envolveu-se, sentimental e intelectualmente, com Maribelle Bartók, a Bela, como lhe chamava, que lhe transmitiu uma visão cósmica do mundo que Marais trataria de adaptar, anos mais tarde, à realidade vimaranense. A deambulação monegasca terminou com a recusa de Guy em casar-se com Maribelle, decidido a não ludibriar, mais uma vez, o seu destino. Tal recusa seria mote para que Maribelle se vingasse e que de tão mesquinho acto resultasse a fuga de Marais. Beleza inteligente e pérfida, Maribelle lança o boato, nos mais influentes círculos, de que Guy é Le Chat Noir, o arguto ladrão de bancos. Verdade ou não, o que é certo é que Marais parte para a Suíça, onde permanece dois meses e meio. Em Genebra entra para a maçonaria e, paradoxalmente ou talvez não, em Zurique entra para a Opus Dei. Delatado por um banqueiro, Guy Marais larga tudo o que tem em vinte e duas horas e, com alguma ironia para com o país de onde acabara de sair, decidiu tornar-se marinheiro. Apenas com uma simples mochila e três mudas de roupa, Guy Marais chegou a Génova e daí atravessou o mediterrâneo até Ceuta. Deste porto africano escreve à sua mãe confessando-lhe estar decidido “agora sim, a não mais descer do nível de cavalheiro que tanto [lhe] custara atingir” e que abandonou “o vício dos poemas de vez”. Curiosamente, o destino reservar-lhe-ia algo bem diferente das palavras escritas à sua mãe: depois de seis meses de silêncio, Guy é tido como um poderoso traficante de armas sindicalizado, facto que nega com veemência. Dois anos depois, já em meados de noventa, Guy Marais é achado em Marselha, metido na droga e no seu comércio. Dizem as más línguas que foi membro do gang de Alain Fournier. Dizem as mesmas más línguas que Guy Marais matou gente. É também em Marselha que Guy privou com o grande Pierre La Rothière, com quem se diz ter tido uma relação. Tudo factos não provados. O que é certo é que é em Marselha que Marais fica durante vários anos, dobrando o século e o milénio, empregado numa fábrica de sabões local e cronista de música tradicional africana para um jornal da cidade. Quando já todos temiam que, pela vida e suas vicissitudes, tivesse esquecido o seu sonho inicial, Guy Marais, fazendo jus ao seu temperamento instável, abandona a certeza, larga a segurança e decide voltar ao seu ponto de partida: a chegada a Guimarães, o nirvana consigo próprio, o início do seu próprio fim. Consegue uma pós graduação em Estudos Urbanísticos na Universidade de Marselha onde se propõe averiguar a veracidade de um rumor sobre a cidade berço, que lhe fora segredado por um amigo, uma vez, à porta de um bar em Montpellier. Tal rumor postulava que grande parte da parte histórica da cidade berço é falsa, sendo o resultado de três grandes projectos urbanísticos iniciados em 1810 de modo a se conseguir, rapidamente, o estatuto de cidade para a então pequeníssima vila (o que se consegue em 1853). Tais projectos teriam sido executados segundo metodologias medievais achadas e estudadas na única casa de tal altura que permanecera em pé, resistente singular, a par do Castelo e de algumas igrejas, ao grande fogo de 1667. Este plano viria, uma centúria depois, a ser retomado pelo Estado Novo com o desiderato de afastar Craveiro Lopes de Lisboa estabelecendo a residência oficial da Presidência da República no Paço dos Duques de Bragança. Desde que chegou a Guimarães, no Outono de 2004, Guy Marais tem-se dedicado a recolher provas desta tese, na qual acredita piamente, apesar de só ter o Paço como sustentáculo fáctico-intelectual do que defende."


Georges Savage, Outubro de 2007.

Um comentário:

  1. das melhores biografias que tenho lido caro savage. até me arrepio de imaginar como será o obituário.

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