Mais valia nunca do que tarde, mas encontrei, finalmente, a minha vocação. Despedi-me do mundo e tornei-me num hikikomori, embora já um pouco passado da idade. De hoje em diante, ficarei confinado ao meu reduto doméstico, de onde não sairei a não ser arrastado pelo bigode, pelo menos até que o Verão volte. Para me distrair, nos momentos em que fazer nada não me baste, irei transcrevendo para aqui uma colectânea de textos sobre a alma vimaranense reunida por um tio-avô da senhora minha mãe, que recebeu os papéis em herança e que, vá-se lá perceber porquê, conseguiu resistir à tentação de lhes chegar o fogo que lhe incendiava os olhos sempre que se perguntava por que razão recebeu ela aquilo, enquanto que a prima Adosinda de Arões ficava com as cédulas do Banco Lisboa & Açores.
Aí vai o primeiro fascículo dos anais do pensamento vimaranense:
MORALIDADE AOS DOMICÍLIOS
Desde que pelo nosso direito constitucional se incumbiu a El-Rei a cerimónia abaritonada da abertura do parlamento por um discurso programa e desde que o jornalismo firmou como praxe sagrada a explanação retórica e sempre honesta do seu fim no número inaugural, o menu pertenceu de vez, como integrante, aos costumes nacionais.
Qualquer manifestação cerimoniosa da vida pública que se não inicie, em primeira solenidade, pelo cozinheiro, que declame quais os pratos de convicção, desassombro e independência que se vão servir, é uma manifestação desprezível e tacanha, quando não atentatória dos direitos deste povo.
Embora queiramos respeitar, em vassalagem, de cócoras, esse princípio da soberania popular, somos obrigados a confessar que, ao contrário de vós, Meus Senhores!, nos deixámos guiar cegamente pela nossa vontade — uma vez que reconhecemos a luta inaproveitosa de todas as doutrinas que contrariam o determinismo e estamos certos de que a irresponsabilidade criminal é o futuro da investigação jurídica.
Somos, pois, irresponsáveis.
Sabemos apenas, e é muito pouco, que nos determina um ódio insaciável à sociedade vimaranense que, a partir do seu símbolo até o mais fútil dos seus actos quotidianos. É a mais detestável, a mais hipócrita, a mais ignorante das sociedades provincianas.
Juramos-lhe um ódio de morte quando nos escorraçou do seu seio por termos a audácia da verdade, quando nos insultou por apresentarmos o nosso amor na praça pública, quando se nauseou do nosso monóculo, da nossa cabeleira, e, sobretudo, quando pensou que nós fazíamos na rua o que certa classe de homens fazem no teatro – representávamos a vida.
Mas, porque alguma coisa de útil deve ter o sangue da nossa mocidade, porque desprezamos sempre a opinião das vizinhas e a crítica desses jornalistas que tantas vezes temos topado nas mais asquerosa tavernas, nós vamos hoje fotografar, bem ou mal, os meios não importam, a podridão do burgo, o lixo desta terra, apontar-vos, Meus Senhores!, o conjunto de factos que vos fazem bandalhos.
Havemos de conseguir alguma coisa – porque a circunstância que vos impele o maior número de imbecilidades e de actos nojentos é a certeza, em que vivíeis, de que essas imbecilidades e essas coisas nojentas seriam desconhecidas.
Doravante os fracos, que vós roubais, e as mulheres, que prostituis, terão em nós uma defesa certa, um advogado gratuito – e por isso mesmo ignorado.
Aqui não há anonimato – nós saldaremos todas as contas, pagaremos todas as afrontas pelo único meio que conhecemos e que respeitámos – pela imprensa, pela escrita.
É certo que a vossa perspicácia descobriu como que uma contradição entre os nossos sentimentos de ódio e de defesa.
É que nós, no ódio de morte à sociedade, compreendemos também que Guimarães era o berço e o túmulo da nossa vida, o meio em que o fado nos levaria, um dia, para construirmos um lar; que em Guimarães vive talvez a nossa noiva e vive a nossa amante, e, sendo assim, nós carecemos de batalhar por elas com o mesmo entusiasmo com que, pelo trabalho, arrancámos à natureza o pão de cada dia.
E o meio mais razoável de castigar será, sem dúvida, como o disse Camilo e como numa folha volante, que vos magoou, escreveu um belo rapaz de um belo talento – «esta caneta de dez réis» – introduzindo-vos a moralidade em casa, levando-a lá como o carvoeiro vos leva o carvão e a lavadeira a vossa roupa limpa de manchas.
Eduardo de Almeida e/ou Alfredo Pimenta
(copiado de O Burgo Podre, n.º 1, 1902)
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