domingo, 18 de novembro de 2007

Ele Também É Estado

Por motivos que apenas interessam à minha pessoa e ao discreto senhor de fraque e cartola que não me sai da porta, tive que me ausentar para parte incerta, a modos que repentinamente e por tempo indeterminado, o que me obrigou a abandonar algumas das pequenas extravagâncias com que preencho o meu viver rotineiro. Uma das actividades que mais me custou abandonar foi o hábito, direi mesmo que quase vício, de folhear os jornais da terra, com a mão esquerda, com o nobre propósito de me cultivar, enquanto que, com a mão direita, vou esvaziando o pires dos tremoços.

Confesso que, em tempos recentes, certa folha que desabrolha para o mundo a partir da rua de Gil Vicente me desperta um fascínio muito particular. Há nela um estranho magnetismo que me atrai. Aquilo parece rendido às artes do ocultismo e da criptologia, que se materializam em textos cuja decifração somente é permitida aos iniciados, o que, infelizmente, não está ao meu alcance, pois já passei da idade de alinhar pelos seniores. Há muito que deixei de ler as linhas daquela gazeta: agora, o meu exercício semanal concentra-se na leitura e interpretação das entrelinhas. Lamentavelmente, a maior parte das vezes não percebo nada, mesmo quando estou de avental, no exercício dos meus insuperáveis talentos de criador de pataniscas.

Ontem descobri, aqui perto do meu refúgio, um cibertasco. Pedi um fino, que aqui tem outro nome, e um pires de tremoços (não tinham, mas tinham vinho aos jarros e moelas aos pratinhos). Sentei-me em frente ao computador, lambendo os dedos da mão direita para não engordurar o teclado, e, entre uma moela e outra, fui à procura dos jornais da terra. Eis senão quando – obrigado, santo deus da modernidade! – descubro que também existe uma versão internética do mais anacrónico dos nossos jornais, escondidinha por trás de um endereço inusitado. Confirmo, com infinita alegria, que, mesmo na Internet, continua, igual a si próprio, anacrónico.

Antes de um piscar de olhos, chego à minha secção preferida: Opinião. Começo a salivar e logo me esqueço de lamber os dedos. Que se lixe o teclado!

Procuro enigmas que sei que nunca decifrarei e que, por isso, me atraem e maravilham. Encontro um editorial programático, não assinado, onde, entre ?! e mais ?!, com um par de ? pelo meio, se fala do prazer do tacto, de derivas deontológicas, de ética comunicacional, da preocupação de não misturar relações comerciais, ou outras, com conteúdos redactoriais. Não gostei nada. Mesmo nada. Querem ver que me vão estragar o jornal?, perguntei eu para os meus botões, enquanto mordia uma moela, desfrutando da sensação única, quase lúbrica, abeirando a lascívia, provocada pelo molho gorduroso a escorrer pelo queixo, depois de escapar dos beiços.

Um pouco mais abaixo, descobri que, afinal, não havia motivo para cuidados. Estava lá quase tudo, certamente sem derivas deontológicas, nem falta de ética comunicacional e sem misturas não aconselháveis (ok, têm razão, ficou em falta o prazer do tacto - estavam à espera de quê?). Inacreditável era o título da coisa (agora que já a li, posso garantir-vos que dificilmente encontrareis um nome que se ajuste com tanta perfeição à coisa nomeada). Também não estava assinado e também lá estavam os ?!, acompanhados por !! e, até mesmo, um sonoro ?!!

A obra pede meças aos melhores enigmas charadísticos dos bons velhos tempos em que os jornais ainda eram jornais e não se deixavam confundir com pés de hortaliça. O seu autor não diz quem seja, mas desde logo nos põe de prevenção de que não fica atrás de Luís XIV (L’état c’est moi!), todas as vezes (muitas) que proclama, grandiloquente e pomposo, até à exaustão,

Eu, que também sou Estado

Fala de uma misteriosa empresa (tentei descobrir qual será, mas nada encontrei: nada na secção de Actualidades, nada nas Últimas, nada nas Breves) em processo de insolvência, cuja viabilização não terá tido o acordo do Estado (recusando, estarão doudos?, a possibildiade de arrecadar 500.000 euros), nem dos trabalhadores (esses madraços, que não querem trabalhar, nem sequer merecem o nome, quanto mais salários!), dando de barato as suas responsabilidades, porque se as empresas se tornam insolventes, não é senão por culpa do Estado e dos seus trabalhadores e fornecedores que têm a ousadia de exigirem às administrações das empresas, inquestionavelmente competentes e cumpridoras, que lhes paguem aquilo que acham que lhes é devido. Assim, não há boa gestão que sobreviva! Eu, que não sou Estado, nem tenho a ver com tal empresa, que nem adivinho qual seja, não consigo ter opinião sobre este assunto, ao contrário daquele que também é Estado, que se afirma favorável à recuperação da empresa.

Porque também é Estado, não serei eu a negar-lhe o direito de se bater pelos seus interesses, enquanto parte interessada no assunto (mas estou em crer que até o fará de um modo absolutamente desinteressado, altruísta e filantrópico).

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[O romeiro de Garrett, à pergunta “Romeiro, romeiro, quem és tu?”, respondeu: “Ninguém!”. Veio depois a saber-se que, afinal, era o dono da casa.]

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Não consigo conter-me. Não há nada como os pequenos prazeres que nos alegram e iluminam os nossos dias. Grande jornal!

Sr. Fernandes, venha daí mais vinho e outro pratinho de moelas com picante!

12 comentários:

  1. Tenho à minha frente o jornal em papel onde saíram os textos a que se refere e posso garantir que estão assinados: o editorial é assinado por José Casimiro Ribeiro e o outro por um tal Olívio Chamado.

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  2. Olívio Chamado? Dos Chamados de Ronfe? Sou muito amigo dos tios dele.

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  3. Meus amigos,

    A família dos Chamados é de há tempos imemoriais uma das grandes famílias do termo de Gondar.

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  4. Então, meus senhores, CA(simiro)Ri(beiro) não lhes diz nada?

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  5. Zé trolha, delicio-me com a frontalidade e o peito aberto dos arrojados e destemidos anónimos.
    Só para que se saiba: o Casimiro Ribeiro morreu há mais de 30 anos e o José Casimiro, seu filho, há mais de 20 anos que não pertence à CARI. A sua insinuação é preversa, desrespeitadora e badalhoca. Mostr-se e não se esconda atrás da máscara.

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  6. ...destemidos anónimos...ou que se escondem artistica e subtilmente atás de um pseudónimo

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  7. 1. O senhor seu pai merece-me o maior respeito e admiração. Já o mesmo não direi em relação a V. Exa., nem a todos quantos deram cabo da empresa que ele construiu em três tempos.

    2. "...destemidos anónimos...ou que se escondem artistica e subtilmente atás de um pseudónimo"

    Suponho que se estará a referir a um tal Olívio Chamado.

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  8. Repito: nunca tive nada a ver com a gestão e administração da empresa e há mais de 20 anos que dela estou desligado.

    Em relação ao tal Olívio Chamado não tenho absolutamente nada a ver com essa personagem.
    Teria muito gosto em trocar opiniões com o Zé trolha, mas de cara destapada. Assim, termino aqui.

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  9. Por lapso, aparece anónimo, mas, obviamente, que é o José Casimiro Ribeiro

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  10. Começo por aclarar algo que escrevi aí acima: quando eu falava em “três tempos” não em referia ao tempo da construção da tal empresa, mas sim ao tempo em que deram cabo dela, demonstrando que, às vezes, os patos bravos aparecem de onde menos seriam esperados. Noto, senhor J.CaRi o modo assanhado como reagiu ao que eu não disse. Eu não disse que o senhor tinha, ou teve, alguma coisa a ver com a CARI, nem disse que o senhor tinha alguma coisa a ver com o personagem chamado Olívio Chamado, que ninguém, nem as páginas amarelas, nem o senhor Google me sabem dizer quem seja. Apenas posso presumir que, quanto a conhecê-lo, estará bem melhor colocado do que eu, uma vez que, ao que me dizem, o senhor é o presidente da entidade proprietária do jornal onde o chamado Chamado escreveu um muito pouco subtil ataque aos trabalhadores da empresa à qual o senhor não tem qualquer ligação. Quanto a perversão e badalhoquice, estamos conversados, passemos adiante (dispensará, certamente, que lhe recorde o seu momento de glória aquando do anúncio de que Guimarães seria Capital Europeia da Cultura).
    Agradeço a sua disponibilidade, mas confesso que não teria qualquer gosto em trocar umas palavras consigo. Já quanto a trocar umas ideias com um senhor chamado Chamado…

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  11. Depois de ler o que vai aí acima e também o increditável texto do PG, só posso dizer, como li lá:
    "Porque será?! Estranha coincidência!!"

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  12. De volta ao cibertasco do Fernandes, tenho a fazer:

    1. Uma rectificação: afinal, os dois textos que deram origem a este postaestavam, a tinta preta no branco do papel de jornal, assinados. Por ter sido induzido em erro, só tenho que me penitenciar junto dos respectivos autores e dos nossos bem-quistos leitores.


    2. Um brinde: à grande figura que deve ser esse que se chama Olívio Chamado! Beberei à sua eterna glória.

    Sr. Fernandes, saia um jarro de tinto e um pratinho de pipis!

    (sempre dão para enganar as saudades dos pregos e das brochas do bom velho Martinho das Sandes)

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