[… continuado de aqui]
Meados de Dezembro de 1807, tempos de desassossego em terras de Portugal. Era madrugada, já longe na noite, mas ainda distante da hora do galo. Um manto de névoa estende-se no horizonte, envolvendo as silhuetas descobertas pelos fios esparsos da Lua Cheia que se escoavam por entre nuvens com prenúncios de dilúvio. O cego de S. Domingos, de orelha alerta, escuta, por entre o murmúrio da água que escorre das bicas do chafariz, o rumor da terra escavada. Há horas que escavam, revezando-se uns aos outros. A certa altura, ouviu o som metálico da lâmina da enxada a percutir em pedra. E uma voz surda, como que vinda do fundo de um poço: aqui já só tem pedra, ajudem-nos a subir. Não tardou muito, e o cego escutou distintamente o mesmo som seco que lhe chegava aos ouvidos no cemitério do Campo Santo, o som do caixão quando desce à terra, seguro por cordas. Não tardou muito, ouviu, três vezes, madeira a bater pesadamente sobre madeira. Depois, continuou aquele estranho ritual com ressonâncias fúnebres: primeira o eco da terra a cair sobre o caixão de madeira, a que se segue o som abafado de terra despejada sobre terra. Agora, a laje, ouviu sussurrar, com os seus ouvidos de cego. Àquela distância, conseguia perceber distintamente as vozes de oua-ei, oua-ei. Contou seis vozes diferentes, pouco mais do que gemidos abafados, acompanhando um pesado arrastar. Até que pedra bate em pedra. Está feito, ciciou alguém, vamos embora. O cego pressentiu passos pesados que se espalham em diferentes direcções. Se pudesse ver, teria visto seis vultos furtivos, carregando grandes cestos cheios de terra, cada qual seguindo por seu caminho. O dia não nasceria sem que uma chuva impiedosa caísse sobre a vila, encharcando a grande praça e formando regos que escorriam pelo inclinado do terreno, arrastando vestígios de terra revolta em direcção contrária àquela de onde os primeiros sinais do dia começavam a despontar.
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