sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O meu Pinheiro

Como de costume, mesmo andando vagamente expatriado, vim a Guimarães matar saudades. Vim ao Pinheiro. Comi rojões, entornei uma infusa daquele que borra a malga e ainda tive barriga para umas castanhas e um naco de toucinho (do Céu, que é sinónimo de Guimarães). Depois, subi a encosta a toque de caixa, malhando na zabumba com quantas forças tinha. Reparei que, este ano, a polícia também decidiu participar na festa. Pareceu-me bem. A polícia sempre ao lado do povo. Depois esperei uma eternidade para que o cortejo arrancasse. Acabei por perceber que, afinal, tinha chegado de véspera, porque o pinheiro dos tempos modernos é no dia 30. Quando aquilo, finalmente, arrancou, lá fui eu, escoltar o mastro, ao som dos tambores e do ranger dos carros de bois. Fui escoltando, fui escoltando, até que me fartei de escoltar. Já passava das três da matina e ainda íamos a descer os Palheiros. Concluí, pelo dorido nos joanetes, que já bastava de tanto escoltar e vim-me embora. Ao atravessar as gloriosas praças do nosso Centro Histórico, ia pensando que teria sido mais previdente se tivesse trazido esquis, para atravessar sem risco aquelas pistas de vomitado peganhento e malcheiroso. E foi então que tive uma iluminação. À camisa branca, ao lenço tabaqueiro, ao gorro e às baquetas, deveria ser acrescentado um novo adereço nicolino, de uso obrigatório: um saco de plástico para recolher o vomitório. Com jeito, ainda haveria quem se lembrasse de fazer arte com o produto assim recolhido e com ela financiar o Museu das Nicolinas.

PS: O Pinheiro deste ano foi uma verdadeira catástrofe, um desastre, um cataclismo com dimensão universal, a crer na notícia que diz que “no Hospital de Guimarães, deram entrada 26 pessoas em coma alcoólico”. 26? Em coma? A sério? É hoje que abrimos os noticiários!

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Crestomatia Vimaranense - 2

Se nenhum atrevido, dos que têm a mania de se atreverem, por falta de que fazer, ousará negar que todo o tempo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades, além de que atrás de tempos, tempos virão, existem evidências que nos levam a acreditar que ele há coisas que, mesmo mudando o tempo, nunca mudam e são sempre como de costume. Pelo menos em Guimarães, como já veremos, no Capítulo II da antologia da alma vimaranense:


O “Pinheiro”

A pedido de vários bicos e bicas publicamos a seguir o relato deste tocante e bombástico cortejo académico:

Hoje, ao romper do dia, a cidade acordará estremunhada pelo estampido formidável de uma girândola... de bichas de rabusco. (Só ouvirão o estrondo aqueles que estiverem na graça da “Ortiga”; isto é, todos os que tiverem cumprido com a sua obrigação, assinando o nosso jornal e pagando a sua assinatura adiantadamente, e sem refilar)…

Pouco a pouco ver-se-á algum povo pelas ruas, outro pelas ingreijas, outro em casa ainda a ferrar o galho, outro a comprar e a vender, na praça do mercado, etc., etc., etc. e tal…

Pela tardinha, alguns estudantes percorrerão as ruas do burgo, todos contentinhos e sem lhes caber uma fajeca, a bater em caixas e a bater em bombos, rijamente, numa grande reinação. E haverá Manéis e Manelas a olhar para aquilo tudo, espantados, com os olhos abertos como a Porta da Vila, como se nunca tiveram visto…

À noite, mais ou menos pelas horas do costume, virá, mais ou menos do sítio do costume, um pinheiro, do tamanho mais ou menos do costume, num carro que será puxado pelas juntas de bois mais ou menos do costume; e seguirá o itinerário do costume, até ao local do costume, onde será prantado ao alto, como de costume. (Quem não souber o que é do costume, é... como quem não vê: mas em chegando logo a noite já fica a saber tudo – se quiser –, nem que seja tapado como um calhau e mais burro do que um jumento). À frente do pinheiro irão, como do costume, algumas caixas e bombos (este ano espera-se que o número de tocadores cresça... a metade com outros tantos); e atrás levará a música, atacando a sinfonia do costume. Etc. etc, etc. Haverá bastantes senhoras pelas janelas dos prédios; e, pela rua fora, muita gente a andar com os pés, e vários basbaques parados a ver (isto, está claro, sem ofensa, e não desfazendo em quem está presente; nós também lá estaremos).

Depois da chegada do bicho, que virá como um cadáver morto estendido ao comprido, será servida aos lavradores uma ração de broa, figos (não confundir este termo), e não sabemos que mais. Os boizinhos mascarão em seco… a fresquinha, o taro, o basqueiro; e os donos engavetarão para o saco, como uns alarves. É esta uma função muito interessante: tão interessante, tão interessante, tão interessante, que até há criaturas que morrem de pasmo a presenciá-la.

Nesta noite também é costume aparecerem bastantes palermas, que agarram na maçaneta e se fazem passar por académicos: por isso recomendamos cuidado com as falsificações... Depois, às tantas da madrugada, terão lugar as clássicas vòvedeiras… (cada uma, de tremer céu, terra e mar)... E assim terminará a chegada triunfal do “pinheiro”.

[Dos recortes do meu tio Desidério Galhardo. Este texto saiu originalmente no jornal A Ortiga, n.º 2, ano 1, 29 de Novembro de 1925, mas que bem podia ser publicado no Notícias de Guimarães de amanhã, no Expresso do Ave do ano que passou, no Povo de Guimarães do ano que virá ou no Comércio de Guimarães de 1898.]

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Psiquismo e Bullying: Um Caso de Estudo

A propósito dos interessantes opúsculos sobre o Cavalo de Ferro escritos por Samuel Silva na sua Colina Sagrada, é caso para concluir, despretensiosamente, o seguinte: por via de regra, progresso significa avanço; a nível comunicacional, em grande parte dos casos, avanço significa rapidez. Em 1994, a viagem Guimarães-Porto, de 52 km, demorava 1h45. Em 2003, com a reabertura da linha, a mesmíssima viagem passou a demorar 1h11. Um progressinho, portanto, considerando a) uma linha nova, b) comboios novos e c) praticamente a mesma velocidade dos comboios velhos na linha velha. Em 2007, a ainda mesma viagem demora 1h21. Passaram-se quatro anos e o tempo de viagem, ao contrário de todos os sítios na Europa dita civilizada, adeias subsaharianas, Togo, América do Sul e Ásia Central Subdesenvolvida, aumentou. Leram bem: a-u-m-e-n-t-o-u. Sim, século XXI, revolução tecnológica, etc e tal e o raio da viagem consegiu a nóvel proeza de demorar ainda mais tempo, parando em lugares insignificantes (desculpem, pereirinhenses) e, por isso, andando meridianamente mais devagar. Clap, clap, clap. Ou seja, se o progresso significa avanço nem sempre o avanço temporal significa progresso. Isto porque o agrupamento de encandescidos que faz os horários das linhas e decide onde páram os comboios não foi aclarado o suficiente para perceber, na sua ignorância repugnante, que centenas de pessoas que diariamente fazem Porto-Guimarães (e vice versa) de carro, escolheriam o comboio, o cavalo de ferro, o tchutchu se os estultos do monopólio da CP, tivessem tido o cariz visionário, merecedor de progressão (avanço) na carreira de criarem dois comboios diários, rápidos em cada sentido, às horas de ponta. Já viram: não digo que todos fossem rápidos, mas apenas dois (vezes dois vezes dois, em trinta) - eis o meu respeito pelos apeadeiros. Mas não, tudo bem, quem pode nada diz ou faz, a gente continua a ir de carro, já se pensa em fazer um raio de um metro, os estultos a progredirem na carreira e a estaçãozinha, solitária, sobranceira ao alto da Avenida, a dançar o vira, à espera que em Dois Zero Doze a viagem atinja as duas horas. Sinal de progresso, na óptica deles.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

METRO

Muito ou nada se tem falado sobre possibilidade de fazer um metro em Guimarães. Exemplo disso foi o projecto Veiga/Silvares/Creixomil em que se falou muito ou nada do dito metro.

A minha dúvida reside em saber. Sempre residiu. Neste caso reside em Silvares/Veiga e em saber que tipo de metro querem estes tipos para Guimarães. Algumas hipóteses têm sido faladas sem que nada de concreto se saiba. Vamos a elas:

Hipótese 1 - Somos estúpidos e temos dinheiro: vamos fazer um mini metro para que os nossos cidadãos brinquem no futuro parque da Veiga. Tchutchu, tchutchu! Mais uma moedinha, mais uma volta ao laguinho! Tipo comboio turístico da Penha mas com menos velhotas e mais desportistas.

Hipótese 2- Somos espertos mas não temos muito dinheiro: vamos fazer um metro que ligue, numa primeira fase, Guimarães a Pevidem (e a algumas áreas adjacentes) e depois, conforme as nossas possibilidades, vamos alargando a linha.

Hipótese 3- Não sabemos o que somos: vamos fazer um metro que circunde Guimarães e que depois vá por aí abaixo até à Veiga e que depois pare ali, junto ou parque, ou junto a Pevidem.

Não sei qual destas hipóteses será a mais viável para a nossa bonita urbe. Para já, em Guimarães, o metro continua a ser o que sempre foi: uma unidade fundamental de comprimento.

sábado, 24 de novembro de 2007

Temos Homem!

Ainda na taberna cibernética do Fernandes, longe de casa, acabo de ler um e-mail que provocou em mim um forte abalo, que abeirou a convulsão espasmódica. Quem me escreve, diz-me que ficou sentido com algo que eu teria escrito a seu respeito. A verdade é que eu nada disse sobre a sua pessoa, nem poderia ter dito: até há momentos nem sequer sabia da sua existência. Só há pouco, depois de ter lido a caixa de comentários ao meu último escrito aqui vertido, é que, pela primeira vez, me deparei com o seu nome. O impressionante currículo que me enviou produziu em mim efeito semelhante à visão da igreja dos Santos Passos iluminada: a revelação da transcendência em toda a sua pureza e grandiosidade. Desatei a tremer, com as mãos geladas e uma zoeira nos ouvidos, entrei em tempestade cerebral. Fiquei com uma garfada de pipis ao molho de piri-piri entalada no gasganete, embrulhou-se-me o estômago, escorri suores frios, desfaleci, tardei uma eternidade a recobrar o fôlego. Vim a mim com o Fernandes a dar-me palmadas nas costas, a desapertar-me o colarinho e a despejar-me o jarro de vinho pelas goelas abaixo. Confesso que nunca vi nada assim e que o que vi ultrapassa tudo quanto poderia imaginar. Senti-me em presença de um ser único e inigualável. Estou certo de que, desde Afonso Henriques, nunca houve ninguém com tal dimensão em terras de Guimarães. Esmagado por tanta erudição, eloquência, cosmopolistismo e mundividência, não tenho dúvidas de que este homem merece um trono, um altar, um banco privativo no jardim do Toural e, até mesmo, um lugar cativo nas retretes da rua de Camões. Eis aqui um sábio, talvez mesmo um erudito, que carrega consigo uma impressionante ilustração, um imenso know-how e, ouso dizê-lo, algum savoir faire. Este homem é um portento, um estratega, um predestinado e um visionário.

Meus senhores e minhas senhoras, escusam de procurar mais. Chamem por ele, enquanto é tempo.

Chamem Olívio Chamado.

Só ele pode ser o Comissário da Capital Europeia da Cultura em 2012.


Crestomatia Vimaranense – 1

Mais valia nunca do que tarde, mas encontrei, finalmente, a minha vocação. Despedi-me do mundo e tornei-me num hikikomori, embora já um pouco passado da idade. De hoje em diante, ficarei confinado ao meu reduto doméstico, de onde não sairei a não ser arrastado pelo bigode, pelo menos até que o Verão volte. Para me distrair, nos momentos em que fazer nada não me baste, irei transcrevendo para aqui uma colectânea de textos sobre a alma vimaranense reunida por um tio-avô da senhora minha mãe, que recebeu os papéis em herança e que, vá-se lá perceber porquê, conseguiu resistir à tentação de lhes chegar o fogo que lhe incendiava os olhos sempre que se perguntava por que razão recebeu ela aquilo, enquanto que a prima Adosinda de Arões ficava com as cédulas do Banco Lisboa & Açores.

Aí vai o primeiro fascículo dos anais do pensamento vimaranense:


MORALIDADE AOS DOMICÍLIOS

Desde que pelo nosso direito constitucional se incumbiu a El-Rei a cerimónia abaritonada da abertura do parlamento por um discurso programa e desde que o jornalismo firmou como praxe sagrada a explanação retórica e sempre honesta do seu fim no número inaugural, o menu pertenceu de vez, como integrante, aos costumes nacionais.

Qualquer manifestação cerimoniosa da vida pública que se não inicie, em primeira solenidade, pelo cozinheiro, que declame quais os pratos de convicção, desassombro e independência que se vão servir, é uma manifestação desprezível e tacanha, quando não atentatória dos direitos deste povo.

Embora queiramos respeitar, em vassalagem, de cócoras, esse princípio da soberania popular, somos obrigados a confessar que, ao contrário de vós, Meus Senhores!, nos deixámos guiar cegamente pela nossa vontade — uma vez que reconhecemos a luta inaproveitosa de todas as doutrinas que contrariam o determinismo e estamos certos de que a irresponsabilidade criminal é o futuro da investigação jurídica.

Somos, pois, irresponsáveis.

Sabemos apenas, e é muito pouco, que nos determina um ódio insaciável à sociedade vimaranense que, a partir do seu símbolo até o mais fútil dos seus actos quotidianos. É a mais detestável, a mais hipócrita, a mais ignorante das sociedades provincianas.

Juramos-lhe um ódio de morte quando nos escorraçou do seu seio por termos a audácia da verdade, quando nos insultou por apresentarmos o nosso amor na praça pública, quando se nauseou do nosso monóculo, da nossa cabeleira, e, sobretudo, quando pensou que nós fazíamos na rua o que certa classe de homens fazem no teatro – representávamos a vida.

Mas, porque alguma coisa de útil deve ter o sangue da nossa mocidade, porque desprezamos sempre a opinião das vizinhas e a crítica desses jornalistas que tantas vezes temos topado nas mais asquerosa tavernas, nós vamos hoje fotografar, bem ou mal, os meios não importam, a podridão do burgo, o lixo desta terra, apontar-vos, Meus Senhores!, o conjunto de factos que vos fazem bandalhos.

Havemos de conseguir alguma coisa – porque a circunstância que vos impele o maior número de imbecilidades e de actos nojentos é a certeza, em que vivíeis, de que essas imbecilidades e essas coisas nojentas seriam desconhecidas.

Doravante os fracos, que vós roubais, e as mulheres, que prostituis, terão em nós uma defesa certa, um advogado gratuito – e por isso mesmo ignorado.

Aqui não há anonimato – nós saldaremos todas as contas, pagaremos todas as afrontas pelo único meio que conhecemos e que respeitámos – pela imprensa, pela escrita.

É certo que a vossa perspicácia descobriu como que uma contradição entre os nossos sentimentos de ódio e de defesa.

É que nós, no ódio de morte à sociedade, compreendemos também que Guimarães era o berço e o túmulo da nossa vida, o meio em que o fado nos levaria, um dia, para construirmos um lar; que em Guimarães vive talvez a nossa noiva e vive a nossa amante, e, sendo assim, nós carecemos de batalhar por elas com o mesmo entusiasmo com que, pelo trabalho, arrancámos à natureza o pão de cada dia.

E o meio mais razoável de castigar será, sem dúvida, como o disse Camilo e como numa folha volante, que vos magoou, escreveu um belo rapaz de um belo talento – «esta caneta de dez réis» – introduzindo-vos a moralidade em casa, levando-a lá como o carvoeiro vos leva o carvão e a lavadeira a vossa roupa limpa de manchas.

Eduardo de Almeida e/ou Alfredo Pimenta

(copiado de O Burgo Podre, n.º 1, 1902)


quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O problema de Caramuel

Encontrei hoje, quando mergulhei no pó*, forçando desencadear a activação excessiva das células mastócitas e basófilas, na esperança de provocar um choque alérgico que me colocaria numa muito conveniente quarentena, que calharia bem, com o tempo que faz lá fora, quando, no meio do Almanach Bertrand de 1901, marcando as páginas de um poema em forma de charada, sob o título de Os Problemas de Caramuel (um figurão do século XVII, “altamente versado em matemáticas, e tão predilectos lhe foram sempre estes estudos, que as próprias questões teológicas era pelas matemáticas que intentava demonstrá-las e resolvê-las”), encontrei um papel que, além de manuscrito, é intrigante. Li:

Sobre Guimarães. Apontamento que copiei d’O Burgo Podre, 1.º número, deste mês de Dezembro de 1902:

«Essa é boa. Dezembro é Inverno. Em Guimarães não há cafés. Em Guimarães não há clubs. Em Guimarães não se toma chá. O jardim fecha cedo e se estivesse aberto era tolice – em Dezembro não se passeia no jardim. Guimarães vai para S. Domingos passar a noite, cavaquear, namorar, cear, arrotar o quilo e ver o magnífico espectáculo das criancinhas cheias de pulgas.»

Ao ler isto tive uma revelação: alcancei que Guimarães é um enigma cuja compreensão só estará ao alcance dos iniciados nas artes das matemáticas, da numerologia ou da ciência cabala. Onde anda o Caramuel que o irá decifrar?


* Pó dos livros, não esse que a vossa cabecinha viciosa e depravada ousou cogitar.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

A Política Económica Finlandesa: Um Paradigma a Seguir Pelas Sociedades Democráticas

Ao olhar para o projecto Touraliano, um velho canalha meu amigo louvou a retirada de árvores da Grande Praça, motivando a ira de seus condiscípulos que, tradicionalmente passo a passo, calcorreavam a distância entre Lisboa e Santarém em menos de um minuto. Eu, erudito de trazer por casa, citador de cordel de palavras difíceis, olhei-o nos olhos, inspirei o ar frio da noite e, fazendo minha a descoberta lexical de outro canalha, apodei-o, iradamente, de dendroclasta de uma figa.

domingo, 18 de novembro de 2007

Ele Também É Estado

Por motivos que apenas interessam à minha pessoa e ao discreto senhor de fraque e cartola que não me sai da porta, tive que me ausentar para parte incerta, a modos que repentinamente e por tempo indeterminado, o que me obrigou a abandonar algumas das pequenas extravagâncias com que preencho o meu viver rotineiro. Uma das actividades que mais me custou abandonar foi o hábito, direi mesmo que quase vício, de folhear os jornais da terra, com a mão esquerda, com o nobre propósito de me cultivar, enquanto que, com a mão direita, vou esvaziando o pires dos tremoços.

Confesso que, em tempos recentes, certa folha que desabrolha para o mundo a partir da rua de Gil Vicente me desperta um fascínio muito particular. Há nela um estranho magnetismo que me atrai. Aquilo parece rendido às artes do ocultismo e da criptologia, que se materializam em textos cuja decifração somente é permitida aos iniciados, o que, infelizmente, não está ao meu alcance, pois já passei da idade de alinhar pelos seniores. Há muito que deixei de ler as linhas daquela gazeta: agora, o meu exercício semanal concentra-se na leitura e interpretação das entrelinhas. Lamentavelmente, a maior parte das vezes não percebo nada, mesmo quando estou de avental, no exercício dos meus insuperáveis talentos de criador de pataniscas.

Ontem descobri, aqui perto do meu refúgio, um cibertasco. Pedi um fino, que aqui tem outro nome, e um pires de tremoços (não tinham, mas tinham vinho aos jarros e moelas aos pratinhos). Sentei-me em frente ao computador, lambendo os dedos da mão direita para não engordurar o teclado, e, entre uma moela e outra, fui à procura dos jornais da terra. Eis senão quando – obrigado, santo deus da modernidade! – descubro que também existe uma versão internética do mais anacrónico dos nossos jornais, escondidinha por trás de um endereço inusitado. Confirmo, com infinita alegria, que, mesmo na Internet, continua, igual a si próprio, anacrónico.

Antes de um piscar de olhos, chego à minha secção preferida: Opinião. Começo a salivar e logo me esqueço de lamber os dedos. Que se lixe o teclado!

Procuro enigmas que sei que nunca decifrarei e que, por isso, me atraem e maravilham. Encontro um editorial programático, não assinado, onde, entre ?! e mais ?!, com um par de ? pelo meio, se fala do prazer do tacto, de derivas deontológicas, de ética comunicacional, da preocupação de não misturar relações comerciais, ou outras, com conteúdos redactoriais. Não gostei nada. Mesmo nada. Querem ver que me vão estragar o jornal?, perguntei eu para os meus botões, enquanto mordia uma moela, desfrutando da sensação única, quase lúbrica, abeirando a lascívia, provocada pelo molho gorduroso a escorrer pelo queixo, depois de escapar dos beiços.

Um pouco mais abaixo, descobri que, afinal, não havia motivo para cuidados. Estava lá quase tudo, certamente sem derivas deontológicas, nem falta de ética comunicacional e sem misturas não aconselháveis (ok, têm razão, ficou em falta o prazer do tacto - estavam à espera de quê?). Inacreditável era o título da coisa (agora que já a li, posso garantir-vos que dificilmente encontrareis um nome que se ajuste com tanta perfeição à coisa nomeada). Também não estava assinado e também lá estavam os ?!, acompanhados por !! e, até mesmo, um sonoro ?!!

A obra pede meças aos melhores enigmas charadísticos dos bons velhos tempos em que os jornais ainda eram jornais e não se deixavam confundir com pés de hortaliça. O seu autor não diz quem seja, mas desde logo nos põe de prevenção de que não fica atrás de Luís XIV (L’état c’est moi!), todas as vezes (muitas) que proclama, grandiloquente e pomposo, até à exaustão,

Eu, que também sou Estado

Fala de uma misteriosa empresa (tentei descobrir qual será, mas nada encontrei: nada na secção de Actualidades, nada nas Últimas, nada nas Breves) em processo de insolvência, cuja viabilização não terá tido o acordo do Estado (recusando, estarão doudos?, a possibildiade de arrecadar 500.000 euros), nem dos trabalhadores (esses madraços, que não querem trabalhar, nem sequer merecem o nome, quanto mais salários!), dando de barato as suas responsabilidades, porque se as empresas se tornam insolventes, não é senão por culpa do Estado e dos seus trabalhadores e fornecedores que têm a ousadia de exigirem às administrações das empresas, inquestionavelmente competentes e cumpridoras, que lhes paguem aquilo que acham que lhes é devido. Assim, não há boa gestão que sobreviva! Eu, que não sou Estado, nem tenho a ver com tal empresa, que nem adivinho qual seja, não consigo ter opinião sobre este assunto, ao contrário daquele que também é Estado, que se afirma favorável à recuperação da empresa.

Porque também é Estado, não serei eu a negar-lhe o direito de se bater pelos seus interesses, enquanto parte interessada no assunto (mas estou em crer que até o fará de um modo absolutamente desinteressado, altruísta e filantrópico).

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[O romeiro de Garrett, à pergunta “Romeiro, romeiro, quem és tu?”, respondeu: “Ninguém!”. Veio depois a saber-se que, afinal, era o dono da casa.]

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Não consigo conter-me. Não há nada como os pequenos prazeres que nos alegram e iluminam os nossos dias. Grande jornal!

Sr. Fernandes, venha daí mais vinho e outro pratinho de moelas com picante!

sábado, 17 de novembro de 2007

Vá de Metro, Satanás - O Inquérito

O Café Toural, correspondendo ao apelo da Câmara Municipal de Guimarães e assumindo uma prática de cidadania consciente e participativa, vai ouvir os seus clientes, fregueses, ocasionais e desafectos para colher contributos para um projecto emblemático que veio embrulhado na proposta para um Parque de Lazer da Cidade Desportiva, vulgo Veiga de Creixomil, e que se integrará na (r)evolução urbanística que se advinha*. Referimo-nos, evidentemente, ao projecto de mini-metro incluído no conjunto de iniciativas para a regeneração nas mobilidades (cf. Parque de Lazer da Cidade Desportiva, Câmara Municipal de Guimarães, Guimarães, 2007, pág. 3).

* Ainda não conseguimos, mas continuaremos a trabalhar sem descanso até conseguirmos adivinhar o que será que se advinha.


Procuram-se respostas para esta pergunta:


Que metro queremos para Guimarães?



Hipótese A – Um metro a valer:



Hipótese B – Um mini-metro a valer:



Hipótese C O mini-metro da Câmara.



Hipótese D - Um mini-metro "faça-o você mesmo":


As respostas a este inquérito podem ser deixadas na caixa de comentários ou dirigidas para a caixa de correio do Café.


A melhor resposta será contemplada com um utilíssimo passe vitalício para a linha de mini-metro de Guimarães (cortesia da loja de ferragens Ferreira da Cunha, onde se podem encontrar os melhores metros da cidade).

domingo, 11 de novembro de 2007

Deslouvor e Apologia das Torres

Duas torres? Para que precisa Guimarães de torres, e logo duas? Não nos bastam já as do Castelo e a do Hotel Fundador? Deu-lhes agora para as grandezas? Além de Capital Europeia da Cultura, Guimarães também se vai candidatar a capital mundial do novo-riquismo? Não têm mais que fazer ao nosso dinheiro?

Perguntas como estas andam no ar, desde o dia para sempre inesquecível em que se anunciaram os 5 projectos para Guimarães. Muitas objecções ouvi eu às duas torres à beira parque de lazer da Veiga de Creixomil. Dei-lhes razão. Definitivamente, acho mal: Guimarães não precisa de duas torres plantadas entre as vacas, os milheirais e as águas que escorrem serenas, límpidas e sussurantes, do rio de Couros. Fazem-nos tanta falta como um parque de estacionamento subterrâneo no Toural.

Porém, como sou curioso e faço gosto em fundamentar as minhas opiniões, fui ler a proposta, onde fiquei a saber que o que se propõe é a edificação de duas torres balizadoras do grande acontecimento urbanístico (…) que se constituem como símbolo das novas centralidades e do momento histórico. Não estou seguro de ter percebido, mas acho bem. Aquilo só pode ter saído da mente iluminada e irisdicente de um visionário futurista e, porventura, pós-moderno. A Guimarães fazem falta grandes acontecimentos urbanísticos (para pequeno, já nos basta o Centro Histórico), onde floresçam símbolos de novas centralidades e do momento histórico. É Guimarães, de next big thing, que o rato do Jean-Paul Voreira anunciou.

Todavia, quando passei à parte das figurinhas do projecto, vi isto:

Veiga de Creixomil, com as Torres Balizadoras
(Para ampliar, toque no chão)

Confesso a minha desilusão, perante pequenez tamanha. Afinal, são duas mini-torres, à imagem do mini-metro e do mini-oceano que nos andam a prometer como coisas grandiosas (há quem diga que megalómanas, mas eu não chego a tanto). Acho mal. Se vamos ter torres, que sejam o espelho da nossa grandeza e que façam roer de inveja toda a Europa. A uma capital europeia, como Guimarães vai ser, não tarda nada, fica bem um par de torres, desde que sejam torres e que não nos envergonhem ao lado da Taipei 101, das Petronas Towers ou da Jim Mao Tower. Torres que façam esquecer as malogradas Twin Towers do WTC e que olhem lá do alto para o Triumph-Palace moscovita. Se vamos ter torres, que sejam à imagem dos nossos pergaminhos, da nossa história, da nossa grandiosidade e da nossa, com o perdão da palavra, virilidade. Guimarães merece ter as mães de todas as torres, que, enquanto tais, também podem servir para perpetuar o nome da primeira construtora de torres desta nossa terra centenária e, até mesmo, ouso dizê-lo, milenar.

Senhoras e Senhores de Santa Clara, o que Guimarães precisa é que deixem de pensar pequenino, que sejam ousados e que tratem de construir as Mumadonas Towers. Ei-las:

Veiga de Creixomil, com as Mumadonas Towers
(
Para ampliar, toque no céu)

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A Nossa Querida TV

Já não era sem tempo. Depois da saudosa TV Covas (nome popular da muito mais erudita “Televisão Regional de Guimarães”), Guimarães deixou de flanar nas ondas hertzianas que compõem o espectro televisivo nacional. Até que, muitos anos depois dos memoráveis tempos das TVs piratas, apareceu a GMRtv, que só não foi grande notícia porque a coisa noticiada seria pequena: um diminutivo de televisão que se apresenta num rectângulo de cinco polegadas e meia, num computador perto de si. Mas, agora, a coisa vai crescer. A GMRtv vai poder deixar de ser vista apenas em formato minorca, tornando-se numa verdadeira televisão ou, até mesmo, num plasma com mais de 100 polegadas. A partir de Dezembro, a GMRtv vai transformar-se na companhia diária dos vimaranenses, através do serviço de cabo da TVTEL. Para não perder pitada, já ando à procura de casa no Porto ou em Oeiras.

Via: Colina Sagrada

Contra o Clericalismo Dominante Numa Sociedade Laica Ou Vice-Versa

Na espúria tentativa de tornar o Natal naquilo que ele não é, numa altura em que ele, muito menos, já aí está, as iluminações já começaram a ser colocadas no centro-cidade. Isto ainda antes do Pinheiro ser cortado, com uma pressa mais digna de obstinação mercantil do que de cumprimento de agendas e inauguração de praças. Nada de anormal neste uso iluminado, não fosse o facto de ninguém querer saber de iluminações para pouco, já que de belo nada têm. Mais valia pô-las todas juntas em S. Torcato, que, destarte, dariam vida à igreja cinzentona que lá há, fazendo acontecer um happening, coisa que por lá acontece pouco. Tudo que há cá tem que haver na minúscula área do centro-cidade. Atrofiante. Amiúde roçante do desespero. Extemporâneo. E pronto, daqui a um mês – é só passar o Guimarães Jazz, senão até parecia mal – começa aquela porcaria da música nas ruas, com publicidade bombardeada a quem se está defecando para ela, coisa de bimbos e parolos, feita para bimbos e parolos. E a CMG, conivente, cala e consente, autorizando, pensando ai que lindo, que tradição, dancemos o vira.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O Porco

Hoje acordei com um torcicolo obstinado. Não consigo virar o pescoço para a esquerda, muito menos para a direita. Nem, sequer, ò má fortuna, me é permitido colar os olhos no chão. Nem, ao menos, erros meus, sou capaz de olhar em frente e seguir caminho.

Pois é: hoje levantei-me de nariz empinado, com os olhos fixos lá nas alturas. E dei comigo a pensar: como é diferente Guimarães quando olho para ela assim.

Ia eu por aí acima às apalpadelas e aos encontrões, sem sequer ver onde pisava, mas sem abandonar a minha pose altiva e, até mesmo, ligeiramente emproada (-que c***lho, não vê por onde vai, homem de Deus?), a olhar para os telhados, para as mansardas e para as clarabóias vimaranenses, quando, de repente, tive uma visão rara e insólita.

Vi um porco.

Lá em cima, pairando sobre os telhados, avistei um porco que carrega uma cruz. O que ele faz ali, é para mim um imenso mistério.

Alguma alma caridosa me ajuda a decifrar os segredos que guarda o porco de S. Domingos?

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

1 Engano n1a Concordância

Nalguns lugares da cidade, maioritariamente rotundas, víamos ou vemos posters com o Castelo da dita. Por baixo da imagem da castelada, o que se lê, ao contrário do pretendido, é "Não é UM maravilha?" Responde-se: não, não é um maravilha porque maravilha é feminino. É UMA maravilha. Logo, há que pôr "Não é 1a maravilha" para que fique bem. Porque o que está mal, por regra, é mau. Ainda por cima, tendo a cidade universidades e escolas onde ensinam concordâncias. E, estando mal, é claro que enerva. E pior, enerva mais pensar que há quem tenha sido pago por fazer mal.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Segurem-se!

E, agora que já cá estamos todos, afora os que ainda hão-de vir, é que isto vai ser!

Os Nossos Clientes: Guy Marais

Pedem-me uma biografia. A ela vamos, não pela minha mão, mas pela pena de Georges Savage, editor crítico de alguma da minha obra, cínico amigo que não perde uma oportunidade de me mitificar. O que os caros leitores se preparam para ler é uma mistura harmoniosa de realidade com pouquíssima ficção. Alteram-se datas e nomes, salvaguardam-se identidades, exceptuando minhas e de meus pais, de molde a proteger, destarte, todos aqueles que comigo privaram e que fizeram a minha vida até agora. Mas não será difícil compreender quem é quem neste caminho que trilho de há quarenta anos a esta parte.

"Guy José de Marin Marais nasceu em Paris, no Marais, a 16 de Outubro de 1967. É filho de Cidália do Céu de Sá José e de Ghislain Marin Marais, que dizem ser descendente em linha directa do afamado compositor seiscentista. Muito pouco ou quase nada o liga a Guimarães, a não ser o facto de lá viver desde 2004. Mora numa casa de arquitecto em Pinheiro.
A infância de Guy Marais foi igual à de todos os meninos parisienses: cultura, haute couture, cinema, bouquinistes ao sábado, Cahiers du Cinema, Echo des Savanes, piano, fromage frais, Jacques Dutronc, Michel Arnaud e Arthur H.. Perseguia-o sonho de uma vida iluminada e Guy, esperançoso, vivia na pungente espera do momento de tão almejada revelação. Um dia, nos idos de oitenta, no metro de Paris, mais precisamente na estação de Chardon Lagache, ouviu os cantares de um grupo de jovens estrangeiros. Percebeu que se dirigiam a si, já que cantavam algo parecido com Oh, Guy Marais, ton progrés é tua vide. Marais ficou radiante, em êxtase pré-xamânico, tipo figura de intelectual parisiense de idos de oitenta, entre o cachecol e a sapatilha branca, com óculos de tartaruga, tamanho extra largo, quando vê um filme de Louis Malle. Na companhia desses mecs alienantes, Guy Marais saltou, dançou, comeu e bebeu durante três dias e quatro noites, até não suportar mais o cantar do galo francês no Bois de Boulogne. O bando era proveniente de Guimarães, berço de pedra du Portugal, país de sa mère Cidália de Sá José. Entre os vapores do vinho, os rapazes e raparigas revelaram-lhe a cosmogonia da sua cidade: a origem e a história das suas gentes e dos seus lugares, do labor da sua grei, dos reis conquistadores e dos castelos encantados. Guy facilmente percebeu que tinha que partir para aquele lugar e que aquele lugar iria ser o seu. E partiu. Fê-lo à boleia, numa road trip françuguesa, com destino final em Guimarães, apoiado por um esparso pecúlio dado por sua mãe, repudiado pelo silêncio de seu pai. Olhando em frente para o seu destino a cumprir - a bela e formosa Guimarães, cidade de pedra com nome como o seu – Guy deixava para trás o pútrido ar da Îlle de France, jurando não mais voltar à cidade-luz. Guimarães era agora a sua meta, não importando nem o tempo que demoraria a lá chegar, nem o modo como o faria. Rumou primeiramente até Clermont Ferrand, onde viveu dois anos com a comunidade portuguesa local, aprendendo-lhe os modos e os trejeitos. Aperfeiçoou a língua e a escrita lusas. Leu Camões, Hélder, Sena, Proust e a Antologia de Poetas Vimaranenses. Viu os filmes de Oliveira, o francês mais português de todos. Apaixonou-se, incorrespondidamente, pela filha do presidente da Mairie, Marie, por quem sentiu imensa saudade – oh, registo de tão grande portugalidade assimilada – na manhã solarenga de Agosto em que deixou Clermont Ferrand rumo a Saint-Bonnet-le-Château, onde permaneceu pouco tempo. Por engravidar Amelie-Jeanette Pereira, a filha do talhante português existencialista da rua da Ligne Maginot, Guy Marais teve que pôr em prática a arte da fuga em todo o seu esplendor, fintando o destino. Da sua curta permanência na vice-capital do Loire, Guy guarda memória dos primeiros domingos lá passados, sempre na companhia das meninas Neuilly, ensinando-lhes a arte da viola de arco, em troca da aprendizagem de todos os segredos do croché e de todo o tipo de sevícias e carícias. Tudo se ensinava e aprendia no quarto de seus ausentes pais, irregulares pagadores das horas de ensinamento da viola de arco, donos de um belíssimo relógio de bolso de ouro e diamantes que Marais não teve pejo em esbulhar - facto que nega peremptoriamente - por crêr que de tal forma saldava as aulas de viola de arco em atraso.
De Saint-Bonnet-le-Château, Guy Marais rumou até Le Puy-En-Velay, decidido a não mais descer do nível de cavalheiro onde tanto lhe custara chegar. Aí - em Le Puy-En-Velay - passou fome durante alguns dias, os suficientes para subtrair uma edição primeira e assinada de um livro de George Perec a um reputado alfarrabista local, vendendo-a por uma pequena fortuna a outro reputado homólogo de Romans-Sur-Isère. É nessa pequena localidade que é barbaramente agredido, numa madrugada de domingo. De tamanha barbárie resultou a perda, por amputação, do mindinho esquerdo. Diz-se que tudo aconteceu por causa do jogo, vício que acompanhou Guy Marais durante alguns anos. Inspirado por tão perniciosa alegação, improvável por não rememorada, Marais abafa as meias medidas e, com a considerável maquia conseguida na venda do livro de Perec, rumou até ao Mónaco, onde terminou o curso de sociologia e privou com a aristocracia local. De dia trabalhava como croupier no casino, à noite dedicava-se de corpo e alma aos recitais de poesia burguesa nos salões da Baronesa Wendt de Osterberg, uma idosa com quem dizem ter-se envolvido sentimentalmente. As suas lucubrações levaram-no à escrita e publicação de pequenos contos, de teor erótico-cultural, feitos de frases curtas e incisivas que lhe caucionaram o respeito da burguesia boémio-intelectual local. Envolveu-se, sentimental e intelectualmente, com Maribelle Bartók, a Bela, como lhe chamava, que lhe transmitiu uma visão cósmica do mundo que Marais trataria de adaptar, anos mais tarde, à realidade vimaranense. A deambulação monegasca terminou com a recusa de Guy em casar-se com Maribelle, decidido a não ludibriar, mais uma vez, o seu destino. Tal recusa seria mote para que Maribelle se vingasse e que de tão mesquinho acto resultasse a fuga de Marais. Beleza inteligente e pérfida, Maribelle lança o boato, nos mais influentes círculos, de que Guy é Le Chat Noir, o arguto ladrão de bancos. Verdade ou não, o que é certo é que Marais parte para a Suíça, onde permanece dois meses e meio. Em Genebra entra para a maçonaria e, paradoxalmente ou talvez não, em Zurique entra para a Opus Dei. Delatado por um banqueiro, Guy Marais larga tudo o que tem em vinte e duas horas e, com alguma ironia para com o país de onde acabara de sair, decidiu tornar-se marinheiro. Apenas com uma simples mochila e três mudas de roupa, Guy Marais chegou a Génova e daí atravessou o mediterrâneo até Ceuta. Deste porto africano escreve à sua mãe confessando-lhe estar decidido “agora sim, a não mais descer do nível de cavalheiro que tanto [lhe] custara atingir” e que abandonou “o vício dos poemas de vez”. Curiosamente, o destino reservar-lhe-ia algo bem diferente das palavras escritas à sua mãe: depois de seis meses de silêncio, Guy é tido como um poderoso traficante de armas sindicalizado, facto que nega com veemência. Dois anos depois, já em meados de noventa, Guy Marais é achado em Marselha, metido na droga e no seu comércio. Dizem as más línguas que foi membro do gang de Alain Fournier. Dizem as mesmas más línguas que Guy Marais matou gente. É também em Marselha que Guy privou com o grande Pierre La Rothière, com quem se diz ter tido uma relação. Tudo factos não provados. O que é certo é que é em Marselha que Marais fica durante vários anos, dobrando o século e o milénio, empregado numa fábrica de sabões local e cronista de música tradicional africana para um jornal da cidade. Quando já todos temiam que, pela vida e suas vicissitudes, tivesse esquecido o seu sonho inicial, Guy Marais, fazendo jus ao seu temperamento instável, abandona a certeza, larga a segurança e decide voltar ao seu ponto de partida: a chegada a Guimarães, o nirvana consigo próprio, o início do seu próprio fim. Consegue uma pós graduação em Estudos Urbanísticos na Universidade de Marselha onde se propõe averiguar a veracidade de um rumor sobre a cidade berço, que lhe fora segredado por um amigo, uma vez, à porta de um bar em Montpellier. Tal rumor postulava que grande parte da parte histórica da cidade berço é falsa, sendo o resultado de três grandes projectos urbanísticos iniciados em 1810 de modo a se conseguir, rapidamente, o estatuto de cidade para a então pequeníssima vila (o que se consegue em 1853). Tais projectos teriam sido executados segundo metodologias medievais achadas e estudadas na única casa de tal altura que permanecera em pé, resistente singular, a par do Castelo e de algumas igrejas, ao grande fogo de 1667. Este plano viria, uma centúria depois, a ser retomado pelo Estado Novo com o desiderato de afastar Craveiro Lopes de Lisboa estabelecendo a residência oficial da Presidência da República no Paço dos Duques de Bragança. Desde que chegou a Guimarães, no Outono de 2004, Guy Marais tem-se dedicado a recolher provas desta tese, na qual acredita piamente, apesar de só ter o Paço como sustentáculo fáctico-intelectual do que defende."


Georges Savage, Outubro de 2007.

domingo, 4 de novembro de 2007

Aos amigos

Aos amigos que me convenceram a acompanhar os respectivos fedelhos ao Multiusos para verem o “Ruca ao vivo”, enquanto eles, demonstrando sentimentos caritativos e de solidariedade humana que me tocaram fundo, faziam o sacrifício de assistir ao espectáculo que um antigo sem abrigo brasileiro ia dar no Vila Flor, venho expressar publicamente o meu reconhecimento pelos memoráveis momentos que me proporcionaram com o seu sacrifício. Os putos adoraram o Ruca, o Luís, a Clementina, a Rosita e o gato das Riscas. E eu fiquei fora de mim, em estado de exaltação eufórica, mais ou menos assim:

[Ana Carolina & Seu Jorge - Chatterton]