Por motivos que apenas interessam à minha pessoa e ao discreto senhor de fraque e cartola que não me sai da porta, tive que me ausentar para parte incerta, a modos que repentinamente e por tempo indeterminado, o que me obrigou a abandonar algumas das pequenas extravagâncias com que preencho o meu viver rotineiro. Uma das actividades que mais me custou abandonar foi o hábito, direi mesmo que quase vício, de folhear os jornais da terra, com a mão esquerda, com o nobre propósito de me cultivar, enquanto que, com a mão direita, vou esvaziando o pires dos tremoços.
Confesso que, em tempos recentes, certa folha que desabrolha para o mundo a partir da rua de Gil Vicente me desperta um fascínio muito particular. Há nela um estranho magnetismo que me atrai. Aquilo parece rendido às artes do ocultismo e da criptologia, que se materializam em textos cuja decifração somente é permitida aos iniciados, o que, infelizmente, não está ao meu alcance, pois já passei da idade de alinhar pelos seniores. Há muito que deixei de ler as linhas daquela gazeta: agora, o meu exercício semanal concentra-se na leitura e interpretação das entrelinhas. Lamentavelmente, a maior parte das vezes não percebo nada, mesmo quando estou de avental, no exercício dos meus insuperáveis talentos de criador de pataniscas.
Ontem descobri, aqui perto do meu refúgio, um cibertasco. Pedi um fino, que aqui tem outro nome, e um pires de tremoços (não tinham, mas tinham vinho aos jarros e moelas aos pratinhos). Sentei-me em frente ao computador, lambendo os dedos da mão direita para não engordurar o teclado, e, entre uma moela e outra, fui à procura dos jornais da terra. Eis senão quando – obrigado, santo deus da modernidade! – descubro que também existe uma versão internética do mais anacrónico dos nossos jornais, escondidinha por trás de um endereço inusitado. Confirmo, com infinita alegria, que, mesmo na Internet, continua, igual a si próprio, anacrónico.
Antes de um piscar de olhos, chego à minha secção preferida: Opinião. Começo a salivar e logo me esqueço de lamber os dedos. Que se lixe o teclado!
Procuro enigmas que sei que nunca decifrarei e que, por isso, me atraem e maravilham. Encontro um editorial programático, não assinado, onde, entre ?! e mais ?!, com um par de ? pelo meio, se fala do prazer do tacto, de derivas deontológicas, de ética comunicacional, da preocupação de não misturar relações comerciais, ou outras, com conteúdos redactoriais. Não gostei nada. Mesmo nada. Querem ver que me vão estragar o jornal?, perguntei eu para os meus botões, enquanto mordia uma moela, desfrutando da sensação única, quase lúbrica, abeirando a lascívia, provocada pelo molho gorduroso a escorrer pelo queixo, depois de escapar dos beiços.
Um pouco mais abaixo, descobri que, afinal, não havia motivo para cuidados. Estava lá quase tudo, certamente sem derivas deontológicas, nem falta de ética comunicacional e sem misturas não aconselháveis (ok, têm razão, ficou em falta o prazer do tacto - estavam à espera de quê?). Inacreditável era o título da coisa (agora que já a li, posso garantir-vos que dificilmente encontrareis um nome que se ajuste com tanta perfeição à coisa nomeada). Também não estava assinado e também lá estavam os ?!, acompanhados por !! e, até mesmo, um sonoro ?!!
A obra pede meças aos melhores enigmas charadísticos dos bons velhos tempos em que os jornais ainda eram jornais e não se deixavam confundir com pés de hortaliça. O seu autor não diz quem seja, mas desde logo nos põe de prevenção de que não fica atrás de Luís XIV (L’état c’est moi!), todas as vezes (muitas) que proclama, grandiloquente e pomposo, até à exaustão,
Eu, que também sou Estado
Fala de uma misteriosa empresa (tentei descobrir qual será, mas nada encontrei: nada na secção de Actualidades, nada nas Últimas, nada nas Breves) em processo de insolvência, cuja viabilização não terá tido o acordo do Estado (recusando, estarão doudos?, a possibildiade de arrecadar 500.000 euros), nem dos trabalhadores (esses madraços, que não querem trabalhar, nem sequer merecem o nome, quanto mais salários!), dando de barato as suas responsabilidades, porque se as empresas se tornam insolventes, não é senão por culpa do Estado e dos seus trabalhadores e fornecedores que têm a ousadia de exigirem às administrações das empresas, inquestionavelmente competentes e cumpridoras, que lhes paguem aquilo que acham que lhes é devido. Assim, não há boa gestão que sobreviva! Eu, que não sou Estado, nem tenho a ver com tal empresa, que nem adivinho qual seja, não consigo ter opinião sobre este assunto, ao contrário daquele que também é Estado, que se afirma favorável à recuperação da empresa.
Porque também é Estado, não serei eu a negar-lhe o direito de se bater pelos seus interesses, enquanto parte interessada no assunto (mas estou em crer que até o fará de um modo absolutamente desinteressado, altruísta e filantrópico).
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[O romeiro de Garrett, à pergunta “Romeiro, romeiro, quem és tu?”, respondeu: “Ninguém!”. Veio depois a saber-se que, afinal, era o dono da casa.]
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Não consigo conter-me. Não há nada como os pequenos prazeres que nos alegram e iluminam os nossos dias. Grande jornal!
Sr. Fernandes, venha daí mais vinho e outro pratinho de moelas com picante!