Veio esta reflexão depois de ter tido a desdita de ler, num jornal cá da terra, um senhor que exsuda opiniões, convicções e certezas, comparar o nosso bem-amado Dom Afonso Henriques, entre outras coisas, a sapatos, a chocolates, a vinhos, a relógio e às nojentas baguetes, daquelas que os franceses costumam carregar debaixo dos sovacos. Naturalmente, fiquei irado. Senti uma indignação irreprimível tomar conta de mim e congestionar-me as meninges. Enrubesci e, ao enrubescer, afogueei-me, chegando mesmo a avermelhar. Saí à rua, decidido a procurar o desbocado autor de tão insidiosas comparações e a fazê-lo engolir os dentes e as comparações.
Passos não eram dados, começou a manifestar-se o meu irrefreável carácter dúplice: pensando bem, aquilo é capaz de não estar assim tão mal achado. Afonso Henriques até pode dar um produto com muita saída. Já era o meu coração tilintante a funcionar.
Logo comecei a ter a visão de cifrões esvoaçantes sobre o Paço dos Duques, enquanto ia subindo a Muralha. Um produto? Não. Porquê pensar pequeno? Muitos produtos. Todos os produtos. Todos com a marca Afonso Henriques. A marca que nos fica bem, como dizia o outro, com uma preocupação não meramente sentimental, mas fundamentalmente comercial (e disse-o: não teve vergonha de o dizer).
Logo comecei a antever um futuro venturoso e próspero, com os vimaranenses a abandonarem tudo para irem vender o Afonso Henriques, é pró menino e prá menina, venha cá freguês, pague dois e leve três. Na farmácia: arranja-se alguma coisa para um problema de caspa? Problema? Já não é problema: depois de três aplicações da loção Afonso Henriques, vai-se a caspa e ainda ganha um cabelo brilhante e volumoso como o da Penelope Cruz. Na pastelaria: que deseja, minha senhora? Cento e cinquenta gramas de Afonso Henriques, mas cortado fininho, por favor. No Ferreira da Cunha: mostra-me pés-de-cabra, por favor. Pés-de-cabra? Isso já não se usa, homem. Agora, só vendemos Afonso Henriques. É muito melhor do que um pé-de-cabra e ainda serve para coçar as costas.
Já vejo Guimarães inundada de merchandising afonsenriquino: porta-chaves, cinzeiros, esferográficas, bonés, toalhas de praia, aventais, pins, bandeirinhas, pratos, cachecóis, guardanapos, papel higiénico. Tudo recuerdos de Afonso Henriques para turista comprar. E já pressinto, multidões de vimaranenses de todas as idades a ostentarem garbosamente sobre seus peitos a frase I love Afonso Henriques (que, lamentavelmente, em certos troncos espadaúdos, poderá soar com uma entoação insidiosamente ambígua e vagamente gay).
E a marca Afonso Henriques trará consigo, se não o choque tecnológico, as novas oportunidades da gastronomia vimaranense, que ganhará um novo e imparável ímpeto. Já adivinho Afonso Henriques em todas as ementas: não faltarão os bifes à Afonso Henriques (de vaca galega em sangue, sobre cama de erva mourisca, com crocante de trigo-sarraceno), nem as favas à Afonso Henriques (com chouriço mouro), nem tão-pouco as postas de pescada acaralhadas à Afonso Henriques (receita original da Adega dos Caquinhos). No tocante às sobremesas, abrir-se-á um vasto e promissor território a desbravar, onde certamente constarão, entre tantas outras iguarias, as raivas de Viseu e os suspiros de Coimbra. E o vinho da casa, em todas as casas, terá uma marca: “Terras de Dom Afonso”.
E já imaginava o apregoar das maravilhas das pílulas Afonso Henriques, o “viagra do Minho”, quando, ao subir a rua do Beringel, uma simpática e desdentada senhora se aproximou de mim e me disse:
“Ò Honoré, vais com um ar tão caidinho que deves estar mesmo em necessidade. Anda daí, homem, que eu faço-te um Afonso Henriques e ainda te dou um desconto”.